domingo, junho 15, 2008

a ironia regiana

«A ironia, que segundo algumas boas opiniões é prima do humor negro - ainda que, decerto, não prima carnal - e irmã colaça do riso sardónico (embora apenas por portas-travessas), sendo de igual modo vizinha da tragédia e, nos casos extremos, parente especialíssima do ridículo, funciona um pouco à guisa da famosa estalagem espanhola das novelas: só se come o que para lá se leva. E a ironia involuntária, que outros nos garantem ser uma espécie em vias de extinção, também é significativa, dando de barato que tem ao que parece muito a ver com o Destino que comanda a rota dos homens e o drama das sociedades. Neste especialíssimo caso, conviria então confrontá-la com a sua própria imagem, como num espelho em que as figuras, a figura, aparecesse invertida, com um brilho dramático nos olhos arregalados. Porque o irónico ponto que subjaz à ironia tem muito a ver com a frase terrível de António Maria Lisboa, que reza: Todo o acto premeditado ou leviano tem a sua guilhotina própria. Ou, para seguirmos Lautréamont: Ride, mas chorai ao mesmo tempo. Se não puderdes chorar pelos olhos, chorai pela boca. Se ainda assim fôr impossível, urinai. Mas advirto-vos de que um líquido qualquer é aqui necessário”. »

...«A ironia – severa, argumentada, fina, magoada ou sibilina – tem por missão específica funcionar como um filtro que purga dos maus humores e dos fluidos mefíticos a mediana racionalidade que nos deve mover. É um bom remédio contra essas poções maléficas ou duvidosas que nos maculam e nos turvam o quotidiano arguto e salutar que entendemos merecer, para certeira e livremente caminharmos e falarmos. É por isso que o discurso irónico, para verdadeiramente existir, tem de se fazer no interior do circuito comum. É, portanto, sempre social e nunca associal. O que, todavia, não constitui explicação determinante para o Poder nem mesmo lhe interessa muito (a não ser para proibir ou suspeitar), uma vez que este não se move no domínio das exigências éticas mas sim no terreno ervoso da guerra surda às virtualidades mais altas do ser humano. »


Autor: Nicolau Saião

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