sábado, junho 14, 2008

de Nuno Miranda Ribeiro


Da irracionalidade da Esperança


basta um beijo, o calor de um abraço, um sorriso inesperado, para que o cinzento do dia desapareça como gelo em água quente. basta a proximidade do teu corpo, a voz de um amigo, a empatia de um desconhecido. saber que a noite termina com o primeiro bocejo do sol. saber que nem todos os sonhos são maus, que há palavras que curam. basta-me o ruído da respiração, o toque de outra pessoa, o aconchego de um leito. enquanto se desespera uma alma, o sol nasce noutra latitude. e se houver pântano que nos atrase, há litoral mais ou menos perto que nos acalme a finitude. bata o coração mais uma vez e acredito que se aguente mais um pouco. a sombra apenas é visível porque existe sol ou luz de arte humana. e até a lua nos baralha o medo do escuro, reflectindo a antecipação do dia. esperar é ver o horizonte. ou sabê-lo de cor. ou ainda desenhá-lo com o dedo em vidro sujo.


Exaustão da Carne

a chuva conversa com o metal do portão. caem no chão gotas e resmungos. não é possível fugir da voz que se levanta acima dos pequenos ruídos. um tambor no lugar do coração. lâminas por dedos. e o cabelo em fogo. do sonho ecoam as visões do impossível. bate o sol na pele como um castigo, assim que as nuvens se afastam. não tardará o pó. fica sozinha a alma com o peso da sua solidão. será o cansaço o mestre do esforço. e a sede a meta implacável. as sandálias envelhecem eras, na antecipação dos oásis. a pele acolhe as tatuagens do sol, o deserto imposto pelo caminho. não brota água das rochas. nem a emoção oferece benigna catarse que dê sentido à desolação. o animal dentro contorce os membros, os músculos, as articulações, numa lenta metamorfose. o corpo é o seu próprio casulo. depois do festim dos predadores, o fôlego da sobrevivência. a guerra interior no sangue que ferve. a civilização está logo a seguir ao horizonte, logo a seguir ao inalcançável. no dorso do silêncio a noite inscreve o medo e o instinto. é o rasto do incompreensível que embala o sono, são as marcas do insuperável que assinalam as pegadas. pulsa como um coração amedrontado a luz precária da consciência. a lua acende ainda a esperança enquanto houver força. e há sempre uma caverna interior quando o frio ameaça o vigor. as dúvidas maiores são o refúgio mais seguro. enquanto não houver descanso e respostas condescendentes, há motivo para viver. quando o sol se puser sobre os ossos exaustos, pode o animal entrar na sua alma apaziguada. por agora, o medo ainda serve para incitar os músculos e a imponderabilidade. ser é ser ousado. é avançar no declínio das marés. erguer a fragilidade por entre ruínas. caminhar no fogo. morder a inquietude. seja o vazio apenas vazio. e mesmo uma sombra significará que existe luz. desistir é deixar a corrente ser mais forte. estejam as margens ao alcance do olhar e haverá sempre alento para esbracejar. até ao último fôlego não se acabou a história. e o narrador é suficientemente perverso para inventar deixas ao protagonista, mesmo no escuro da inevitabilidade. não há carrasco para a liberdade da voz mais profunda. e nem os algozes do espírito, que atiçam o vento contra a pele da alma, podem mais que a tenacidade das asas.

1 comentário:

anarresti disse...

só agora reparei.
obrigado pela referência aos meus textos.
um abraço,
nuno.