domingo, julho 13, 2008

revisitar Lisboa


José Cardoso Pires
Lisboa - Livro de Bordo
Vozes, olhares, memorações

Publicações Dom Quixote


Um pequeno livro de 77 páginas povoadas de ruas, gentes, vozes, memórias da nossa terna Lisboa. É-nos dada uma visão da cidade mas de dentro da sua alma, porque as cidades têm alma que só pode ser captada por aqueles que nelas vivem e as amem e as saibam olhar. Não como um turista, pois que mesmo que este “, mergulhe nos interiores em catecismo de city tour a paisagem tem muito de encomenda”, porque e citando ainda palavras do autor, “ninguém poderá conhecer uma cidade se não a souber interrogar, interrogando-se a si mesmo”. “É que isto aqui não é só luz e rio, sabes bem. Não é só geografia, revelações ou memórias e o restante diz-que-diz dos manuais e dos oradores frustrados. Há vozes e cheiros a reconhecer: o do peixe de sal e barrica nas lojas da rua do Arsenal e não vamos mais longe, o da maresia a certas horas das docas do Tejo; do verão nocturno dos ajardinados da Lapa; dos armazéns de apostas marítimas entre Santos e o Cais do Sodré; o do peixe a grelhar em fogareiros à porta dos tascos de recanto ou de travessa, desde o Bairro Alto a Carnide; e “no inverno pelas ruas, o cheiro fumegante das castanhas a assar nos fogareiros dos vendedores ambulantes”.

E assim prossegue Cardoso Pires em diálogo com a cidade, tratando-a por tu, pois ela é a sua companheira de todos os dias, tentando captar uma cumplicidade com ela para poder vivê-la em toda a intensidade.

Mas, diz o escritor “Para chegar a esse entendimento já recapitulei infâncias de bairro, já revisitei lugares, já te disse e contradisse, Lisboa, e sempre em amor sofrido: Por isso desculpa alguma má palavra. Aguenta o modo e faz por esquecer, que eu por acaso até sou de Arroios.”

E em tom de crónica, de certo modo autobiográfico, o autor diz-nos “De Arroios, pois, de Arroios, mais precisamente da lindíssima freguesia de São Jorge, 4º bairro fiscal, ou mais precisamente ainda, duma janela de infância voltada para uma igreja que já não há e para um largo de bêbados dormentes, saltitados por pombinhas maneirinhas.

Um pouco atrás (num quarto da travessa das Feiras, segundo as biografias oficiais) é que o romancista Camilo, muito dado a amores de perdição, praticou os seus erotismos nortenhos com a Dona Ana Plácido; mais abaixo, fim da Rua de Arroios, ficava o cortiço onde o Primo Basílio do respeitado Eça de Queiroz abelhou entre lençóis a despassarada Luizinha que andava fugida aos beirais e por aqui se stá a ver como Arroios, um século atrás, era um verdadeiro folhetim de alcovas tresmalhadas que a História passou à escrita”.

E continuando no seu roteiro por Lisboa, detém-se no Rossio “a olhar com O’Neill o imperador Maximiliano do México que está na estátua do Rossio, a fingir que é o Dom Pedro IV de Portugal.” Triste engano de que já ninguém se lembra e se se lembrar, como diz Cardoso Pires, “que se lixe, seja o Dom Pedro, porque não? Assim como assim, o país fica na mesma e o Rossio ainda ganha mais um caso para entreter”.

Mas neste Rossio do Maximiliano /Dom Pedro, lá está Bocage que hoje podemos vê-lo a qualquer hora no Café Nicola, onde, há dois séculos, tinha a sua mesa de tertúlia e onde, entre rimas e panfletos, conspirava contra a sociedade de policiais e monges-bufos que o haviam de levar à prisão”. E Cardoso Pires recorda que “até à morte do Salazarismo, o Rossio que, hoje, anda percorrido de sonâmbulos retornados das colónias africanas, era uma praça de tertúlias das letras e da política. A do Café Portugal, com escritores de resistência à ditadura, vigiados, mesa sim, mesa não, por polícias de olho aceso. Mário Soares e Azevedo Perdigão, presidente da Fundação Gulbenkian tinham ali poiso certo. Abel Salazar tomava lugar junto deles. No Chave de Ouro, Jorge de Sena e Casais Monteiro comandavam as tertúlias de tarde inteira até ao último verso. E foi lá que Delgado, o General Sem Medo, proclamou a excomunhão de Salazar na célebre sentença do “Obviamente, demito-o”.

O Rossio do Café Gelo, trincheira dos surrealistas, com o fantasma vivo de Raul Leal a declamar um Portugal esotérico e Herberto Hélder a apontar para voos mais longos”.

Claro que por aqui também andou Pessoa, é sabido.

O Pessoa mais solitário e de passagem porque ia abancar mais adiante, no Martinho, com uns poetas do entardecer que ele lá sabia. Apesar disso foi no Rossio, restaurante dos irmãos unidos, que lhe deram pela primeira vez um lugar de honra, retratado por Almada numa das suas obras mais felizes”.

E José Cardoso Pires vai-se referindo a outras ruas, outros locais de Lisboa que lembram rostos e actos que fazem a História da cidade mas igualmente enquadram a cultura portuguesa.

Fala-nos do monumento ao Dr. Sousa Martins que “está irremediavelmente condenado à santidade num modesto canteiro de jardim do Campo de Santana a que o povo chama dos Mártires da Pátria”.

Também não são esquecidos os Velhos do jardim. Os da Estrela, do Príncipe Real sempre à volta do baralho de cartas e no Alto de Santa Catarina é “como o miradouro duma viagem que se sonha e se vai a nossos olhos. Aí um velho afirmou que queria ir para a outra vida com um crucifixo numa mão e um baralho de cartas marcadas no bolso”.

Depois, somos surpreendidos por uma admirável descrição do Palácio Fronteira, em S. Domingos de Benfica com o seu bestiário-mistério guardado em palácio há mais de trezentos anos. E como diz o escritor, “pressente-se aí uma diabólica aliança do sagrado com o profano”.

“Nas paredes, em vez de mártires da fé, alinham-se mulheres com folhas em lugar de seios.

“Alguém de traço escarninho e jamais identificado desenhou a tragédia do Cavaleiro de Jaune mais a sociedade que ele frequentou.

Lá a temos. É um fabulário de relações farsantes que está figurado nesses azulejos. Ali as personagens humanas têm rostos de macacos compenetrados de sapiência e os animais assumem-se como humanos nas expressões e nas atitudes. Há gatos palacianos a estudar música com um mestre de solfejo e com um frade mono, e há outros em cadeira de barbeiro com um homem-símio aos pés”.

Também Rafael Bordalo Pinheiro é referenciado com as suas inconfundíveis caricaturas e o seu bestiário original que se encontram no Museu do Campo Grande.

“São peças de ironia que dão sabor à composição do cenário familiar dos burgueses de Ramalho ou de Eça de Queirós”. Mas o Mestre Bordalo não está só, encontra-se bem acompanhado com os “cartoons” de João Abel Manta que constituem igualmente uma crítica ao quotidiano do país com humor sagaz e corajoso.

Cardoso Pires desce de novo à baixa e chega ao Chiado. Chiado, um cenário, um ritual. “De charuto a fumegar à porta da Havaneza, Ramalho Ortigão assistiu à passagem por aqui du tout Lisbonne do seu tempo”.

“Subir o Chiado”. Quando nesse tempo alguém dizia isto era como se anunciasse um privilégio do século.

Ópera no São Carlos, ceias no Tavares Rico, o Grémio Literário, Rua Garrett, o nervo do Chiado.

Aquilino Ribeiro, pesado de anos, à porta da Livraria Bertrand, lado a lado com um Columbano, um estudante de pintor oitocentista e, no passeio em frente, junto à Sá da Costa, António Sérgio em conversa com um Antero quase menino.

Depois, em nossos dias, foi o fogo nesse Chiado mítico e de ritual que é uma ferida aberta na nossa memória colectiva. “Assim, por mais rápida que seja a cicatrização destas paredes fantasmas, diz o autor, “sei que ficará para sempre um fumo, uma sombra dolorosa a enevoar o passado”.

Mas o Largo do Carmo traz-nos à memória um passado recente que constituiu um momento de glória e de alegria para o povo português: “Largo do Carmo do ano de 74, quem o pode esquecer? Era primavera e a capital proclamava a Revolução dos Cravos diante dos donos da Ditadura encurralados num quartel”, lembra Cardoso Pires.

De bar em bar

No cais do Sodré, o British Bar tem um insólito relógio que roda em sentido contrário, mas é pontualíssimo.

Cardoso Pires era frequentador frequente. “No British Bar os anos passam, as gerações mudam, vêm literatos, vêm contrabandistas, vêm estivadores à mistura com meninas de civilização, mas o espírito e a cor local mantêm-se inconfundíveis.”

“Do outro lado da rua há o Americano que era frequentado nos anos 30 pelo nosso Pessoa”.

Hoje o Americano perdeu lastro.

“O Procópio entrou na cartografia dos bares tocado por uma vaga brisa pós-romântica, cadeiras de veludo, reflexos de Arte-Déco.

O Procópio respeitava a intimidade do Jardim das Amoreiras à sombra dos velhos arcos do Aqueduto das Águas Livres.

Chamam-lhe reviravolta, mas esse espírito e humor estão também numa capelinha modesta, inteiramente dedicada à memória de Bordalo, a leste do Campo de Ourique - A Paródia”

Mas, voltando ao Chiado, é aí que se encontra o bar revivalista mais convicto da cidade, o Pavilhão Chinês. Bar bric-à-brac.

A escolha dos bares é pessoalíssima porque cada bebedor tem o seu mapa e cada mapa os seus portos.

E Cardoso Pires vai recordar o célebre Botequim onde pairará para sempre a alma de Natália Correia e também de Dórdio Guimarães, seu companheiro até ao fim da vida. E diz o autor:

“Se eu, aqui há anos, em vez do English Bar e do Pavilhão Chinês, fizesse rumo ao Botequim n.º 6 meridiano da Graça, sabia que à primeira abordagem iria deparar com um ilha fechada mas que lá dentro Natália Correia, matriarca da noite, proclamava o convívio aberto. Entre salão e tertúlia havia um piano, e tocava-se. E havia literatura da que se lê alto. E política. E cantares de acaso”,

E Cardoso Pires fecha este belo livro que imortaliza a nossa Lisboa com uma evocação desse célebre poema de Álvaro de Campos “Olha, Dasy”, corporizando essa mulher misteriosa e guiando-a através dos magníficos azulejos e dos desenhos nas pedras das calçadas que são o fascínio da cidade.

E, finalmente, numa homenagem aos nossos pintores, se deixa guiar pelo metropolitano e pelo traço vigoroso deixado nos painéis, azulejos de Maria Keil, nos Restauradores, no mural de Rogério Ribeiro, na Avenida, na banda desenhada de Menez, na Rotunda do Marquês, ou de Júlio Resende no jardim Zoológico, depois mais adiante nas Laranjeiras, as laranjas sumarentas de Sá Nogueira, na Cidade Universitária, Vieira da Silva e no Alto dos Moinhos, Camões aparecerá pela mão de Júlio Pomar, acompanhado de Bocage e Almada Negreiros. E na estação do Campo Grande, a biblioteca do tamanho do Império gravada a água-forte por Bartolomeu dos Santos. E, finalmente, Cardoso Pires vai sentar-se na esplanada de um café-snak no Terreiro do Paço junto ao cais dos cacilheiros e a sua última vista da cidade será uma cortina de gaivotas enfurecidas a levantarem-se entre si e o Tejo.

De : Elsa Rodrigues dos Santos

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