sábado, setembro 30, 2006

sem título, Ruy Bello


Um dia alguém numa grande cidade longínqua dirá que morri/
di-lo-á decerto com pena mas sem o alívio que eu próprio decerto senti/
primeiro ao solucionar de vez esse problema de respiração que a vida é/
desde a convulsão da criança que a meio do copo deixou ir leite para a traqueia/
até a instantânea atrapalhação do mergulhador a quem de súbito falta o ar comprimido/
só dispõe da reserva e lhe faltava tanto que ver no fundo sonhador do mar/
depois senti alívio porque às vezes a meio por exemplo da aragem na face/
eu pensava na morte como problema metafísico a resolver pelo menos com higiene/
se não com dignidade com acerto como mais um problema à medida do homem/
Eu estava do lado dos vivos estou do lado dos mortos/
o grande problema era saber se me doía ou se não me doía/
agora nem sei se me doeu ou não ou fui um mero espectáculo de mau gosto/
para a única pessoa encarregada de me ajudar nesse momento/
Ninguém a princípio terá sabido que eu morrera só minha/
mulher avisada de longe virá e me porá a mão sobre a testa/
os demais não não disponho do olhar para me defender/
o tempo depressa se passa são trâmites legais até me terem deixado/
debaixo do chão bem debaixo do chão sem frases lidas/
ou gravadas sem sentimento nenhum/
Uns dias depois um pequeno grupo junto a uma grande janela/
olhará a neblina da manhã de janeiro/
e terá mãos que eu tive para os meus problemas de vivos/
Onde eu estive sobre uma mesa com uma perna cruzada/
suaves começarão a suceder-se e acumular-se os dias/
como cartas revistas linguísticas ou livros adormecidos/
despertos apenas no momento fugaz da leitura/
A vida será indistinta virá até nós como árvores/
rodará em volta como um lençol até cobrir-nos os ombros/
Falareis de mim não posso impedir que faleis de mim/
mas já nada disso me pesa como o simples facto de ter de ser vosso amigo/
Estou só e só para sempre e só desde sempre/
mas antes por direito de opção. Agora não/
Deixaram-me aqui doutor em tantas e tão grandes tristezas portuguesas/
e durmo o sono das coisas convivo com minerais preparo a minha juventude definitiva/
Era como eu esperava mas não posso dizer-vos nada/
pois tendes ainda o problema e a cara da pessoa viva.

9 comentários:

Mano 69 disse...

Essa mosca era varejeira. Bem feito!

SaoAlvesC disse...

Muito Bello... :)

Fresquinha disse...

Mano,

Foi ela que te acordou ? Compreendo então a tua raiva. Mas devias ter feito como o chinês. Quando a apanhasses na cova da mão, gritavas-lhe zzzzzzzz bem alto, e não a matavas.

Mano 69 disse...

Mais vale morrer fisicamente do que psicologicamente…
Esse chinês gosta é de “heavy metal”.

Fresquinha disse...

Mão Morta ?

Anónimo disse...

Um texto muito bonito! Posso concordar com a maioria do que está escrito mas, quando se diz: Estou só e só para sempre e só desde sempre, qual é a certeza que há, a partir da morte, que continuaremos sós?

Fresquinha disse...

Ninguém voltou de lá para nos dar qualquer certeza. Certeza, porém, é a de estarmos irremediávelmente sós. Com ou sem companhia.

Anónimo disse...

Sós
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós e ninguém nos conhece
(...)
Os astros não se explicam; arrefecem.
Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se dentro se refracta,
nenhum ser se transmite.
Quem tenta o sofrimento sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o sofrimento sou eu e mais ninguém.
Quem estremece neste meu estremecimento sou eu só e mais ninguém.

Dão-se os lábios,dão-se os braços, dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mim; segredos dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, dão-se os dias, dão-se aflitivas esmolas;
(....)
dão-se os nervos, dá-se a vida, dá-se o sangue gota a gota, com uma braçada rota.
Dá-se tudo e nada fica.
(...)


António Gedeão

Anónimo disse...

É a lei da vida. Ninguém precisa de nada quando deixa este mundo. As coisas são para nos dar prazer. Serve-te das coisas, e não sirvas as coisas.