**Tradução brasileira de Ladislao Szabo
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— Como se deve mentir? — meditava Kornél Esti.
A psicologia experimental sugere que, quando queremos ter pretextos, devemo-nos referir a fatos que a todo momento aparecem na vida. Se, por exemplo, somos convidados para jantar e não temos vontade de ir, devemos buscar uma doença inocente: dor de cabeça, resfriado etc. Como essas são as doenças mais freqüentes, é óbvio que — dentro da lei das probabilidades — acreditarão.
Só que não é assim. Pode ser que séculos atrás tais desculpas ainda surtissem efeito. Desde lá se desgastaram. Porque as dores de cabeça e os resfriados são freqüentes não só na prática, mas também no repertório de mentiras.
Muitas vezes aconteceu de não ir a algum lugar porque realmente a minha cabeça doía e estava resfriado. Mas, nesses casos, apoiar-se nessa desculpa é mais grosseiro do que simplesmente escrever: "Vocês me entediam, eu vos abomino, estou pouco me lixando". De modo que eu não apresento a verdade mentirosa, mas crio uma verdadeira mentira. Imaginem que, ao cortar as unhas, a tesoura escapa e entra no dedão do meu pé, não consigo me levantar, tenho que colocar compressas na ferida, ou um gato vadio me mordeu e tive que ir correndo ao Instituto Pasteur para me vacinar contra raiva.
Essas mentiras são melhores. Por quê? Porque são inverossímeis. As mentiras querem ser verossímeis — é esse o seu sinal de reconhecimento — e assim, quando as pessoas ouvem um absurdo tão improvável, tão audaz, a última coisa que pensariam é que estão ouvindo uma mentira, porque essas mentiras são tão transparentes, como em geral são as mentiras, mas as mais imbecis mentiras já são tão imbecis, que já nem são mentiras. Não questiono que no primeiro instante talvez apareça uma sombra de dúvida no ouvinte, de que querem fazê-lo de bobo, mas no instante seguinte rejeita indignado tal suposição; afinal seria ofensivo até imaginar que alguém tentasse lhe passar tal conversa, alguém que é tão inteligente quanto o ouvinte. O que se sucede depois disso? Não pensa que é uma mentira das grossas, mas sim uma das casualidades sempre surpreendentes e imprevisíveis da vida, que lhe pregara tantas peças parecidas. A própria história louca o diverte. No fim, quase sempre, a coisa cola.
Aquele que chega tarde a uma reunião pode jurar que teve uma visita inesperada. Ninguém vai lhe dar ouvidos. Mas se o indivíduo disser que atropelou um cachorro com o seu carro — um lindo filhote de raça, que mal completara um ano — e que o levou imediatamente o cachorro para a Faculdade de Veterinária, e que ele lá faleceu na mesa de operações, apesar de implantes e demais tentativas de salvamento, então a mentira brilhará sob a luz da aventura e da verdade. Só o inverossímil é realmente verossímil, só o inacreditável é realmente acreditado.
O reconhecimento dessa verdade é que me salvou num momento crítico da minha vida. Cheguei com duas horas de atraso a um lugar onde era ansiosamente esperado. Era impossível comunicar a verdade, porque ela — como em muitos casos — era mais ofensiva, mais deselegante do que a mais grossa das mentiras. Também não consegui encontrar nenhuma desculpa que explicasse o meu descaso. Nesse meu transtorno desesperante — com a certeza do instinto aguçado — murmurei qualquer bobagem. Disse que estivera com Gálffy, um conhecido meu do interior, que — como a maioria dos presentes sabia — morrera havia dois anos. Como eu bem sabia.
Mas rapidamente detalhei que Gálffy estava vivo, sua morte naquela época aparecera nos jornais por um equívoco divertido, e não foi retificada por um equívoco ainda mais divertido: fora isso o que me contara meu amigo renascido das cinzas durante essas duas horas, e foi isso que eu contei para os presentes, com tantos detalhes e reviravoltas surpreendentes, que em tudo acreditaram e todos me perdoaram. Não tinha que recear que depois fossem verificar os fatos. Gálffy lhes era bastante indiferente. Deixei-o viver por seis meses. Depois, numa noite, o matei. Durante uma conversa, comuniquei que Gálffy realmente morrera. Não senti nenhum remorso por este assassinato. Ele realmente não levaria a mal. E, pensando bem, só poderia me ser grato por ter vivido, graças à minha imaginação, por mais meio ano, se não em outro lugar, pelo menos na imaginação de cinco ou seis pessoas.
À parte devo falar das mulheres. Elas não mentem — como equivocadamente se anuncia —, apenas ressaltam uma parte da verdade. Quando uma mulher tem um encontro na Ilha das Margaridas(1), não diz que ficou em casa tricotando, mas sim que foi passear nas margens do Danúbio. Qual é a explicação para isso? É que a ilha fica de fato no Danúbio, e o próprio passeio está próximo à verdade, com o adendo, que obviamente não é mencionado, de que não passeou sozinha. Em toda a mentira feminina existe um pingo de verdade. Esta é a base moral de suas mentiras. E é por isso que são perigosas. Fincam seus pés num minúsculo espaço de terra, e defendem a sua mentira com tanta convicção, resolução e ardor bem intencionado como se estivessem defendendo a verdade. É impossível tirá-las desse lugar. Os poucos fatos são plasticamente ajustados aos fatos que não existem. Confesso que muitas vezes consigo admirar suas mentiras, como admiro sua leveza, suas proporções, suas delicadas nuances, como as de uma poesia. São perfeitas no seu gênero. Nós temos um sistema original e corajoso. Elas têm prática, que remonta há milênios. Neste gênero, nós podemos ser amadores mais ou menos talentosos e até sábios. Mas elas é que são as mestras, as artistas, as poetisas.
— Fim —
Nota1. Ilha no Danúbio, entre Buda e Pest. (N. do T.)
Fonte: Dezsö Kosztolányi. O Tradutor Cleptomaníaco e outras histórias de Kornél Esti. Tradução do original húngaro por Ladislao Szabo. Coleção Leste. São Paulo: Editora 34, 1996.
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— Como se deve mentir? — meditava Kornél Esti.
A psicologia experimental sugere que, quando queremos ter pretextos, devemo-nos referir a fatos que a todo momento aparecem na vida. Se, por exemplo, somos convidados para jantar e não temos vontade de ir, devemos buscar uma doença inocente: dor de cabeça, resfriado etc. Como essas são as doenças mais freqüentes, é óbvio que — dentro da lei das probabilidades — acreditarão.
Só que não é assim. Pode ser que séculos atrás tais desculpas ainda surtissem efeito. Desde lá se desgastaram. Porque as dores de cabeça e os resfriados são freqüentes não só na prática, mas também no repertório de mentiras.
Muitas vezes aconteceu de não ir a algum lugar porque realmente a minha cabeça doía e estava resfriado. Mas, nesses casos, apoiar-se nessa desculpa é mais grosseiro do que simplesmente escrever: "Vocês me entediam, eu vos abomino, estou pouco me lixando". De modo que eu não apresento a verdade mentirosa, mas crio uma verdadeira mentira. Imaginem que, ao cortar as unhas, a tesoura escapa e entra no dedão do meu pé, não consigo me levantar, tenho que colocar compressas na ferida, ou um gato vadio me mordeu e tive que ir correndo ao Instituto Pasteur para me vacinar contra raiva.
Essas mentiras são melhores. Por quê? Porque são inverossímeis. As mentiras querem ser verossímeis — é esse o seu sinal de reconhecimento — e assim, quando as pessoas ouvem um absurdo tão improvável, tão audaz, a última coisa que pensariam é que estão ouvindo uma mentira, porque essas mentiras são tão transparentes, como em geral são as mentiras, mas as mais imbecis mentiras já são tão imbecis, que já nem são mentiras. Não questiono que no primeiro instante talvez apareça uma sombra de dúvida no ouvinte, de que querem fazê-lo de bobo, mas no instante seguinte rejeita indignado tal suposição; afinal seria ofensivo até imaginar que alguém tentasse lhe passar tal conversa, alguém que é tão inteligente quanto o ouvinte. O que se sucede depois disso? Não pensa que é uma mentira das grossas, mas sim uma das casualidades sempre surpreendentes e imprevisíveis da vida, que lhe pregara tantas peças parecidas. A própria história louca o diverte. No fim, quase sempre, a coisa cola.
Aquele que chega tarde a uma reunião pode jurar que teve uma visita inesperada. Ninguém vai lhe dar ouvidos. Mas se o indivíduo disser que atropelou um cachorro com o seu carro — um lindo filhote de raça, que mal completara um ano — e que o levou imediatamente o cachorro para a Faculdade de Veterinária, e que ele lá faleceu na mesa de operações, apesar de implantes e demais tentativas de salvamento, então a mentira brilhará sob a luz da aventura e da verdade. Só o inverossímil é realmente verossímil, só o inacreditável é realmente acreditado.
O reconhecimento dessa verdade é que me salvou num momento crítico da minha vida. Cheguei com duas horas de atraso a um lugar onde era ansiosamente esperado. Era impossível comunicar a verdade, porque ela — como em muitos casos — era mais ofensiva, mais deselegante do que a mais grossa das mentiras. Também não consegui encontrar nenhuma desculpa que explicasse o meu descaso. Nesse meu transtorno desesperante — com a certeza do instinto aguçado — murmurei qualquer bobagem. Disse que estivera com Gálffy, um conhecido meu do interior, que — como a maioria dos presentes sabia — morrera havia dois anos. Como eu bem sabia.
Mas rapidamente detalhei que Gálffy estava vivo, sua morte naquela época aparecera nos jornais por um equívoco divertido, e não foi retificada por um equívoco ainda mais divertido: fora isso o que me contara meu amigo renascido das cinzas durante essas duas horas, e foi isso que eu contei para os presentes, com tantos detalhes e reviravoltas surpreendentes, que em tudo acreditaram e todos me perdoaram. Não tinha que recear que depois fossem verificar os fatos. Gálffy lhes era bastante indiferente. Deixei-o viver por seis meses. Depois, numa noite, o matei. Durante uma conversa, comuniquei que Gálffy realmente morrera. Não senti nenhum remorso por este assassinato. Ele realmente não levaria a mal. E, pensando bem, só poderia me ser grato por ter vivido, graças à minha imaginação, por mais meio ano, se não em outro lugar, pelo menos na imaginação de cinco ou seis pessoas.
À parte devo falar das mulheres. Elas não mentem — como equivocadamente se anuncia —, apenas ressaltam uma parte da verdade. Quando uma mulher tem um encontro na Ilha das Margaridas(1), não diz que ficou em casa tricotando, mas sim que foi passear nas margens do Danúbio. Qual é a explicação para isso? É que a ilha fica de fato no Danúbio, e o próprio passeio está próximo à verdade, com o adendo, que obviamente não é mencionado, de que não passeou sozinha. Em toda a mentira feminina existe um pingo de verdade. Esta é a base moral de suas mentiras. E é por isso que são perigosas. Fincam seus pés num minúsculo espaço de terra, e defendem a sua mentira com tanta convicção, resolução e ardor bem intencionado como se estivessem defendendo a verdade. É impossível tirá-las desse lugar. Os poucos fatos são plasticamente ajustados aos fatos que não existem. Confesso que muitas vezes consigo admirar suas mentiras, como admiro sua leveza, suas proporções, suas delicadas nuances, como as de uma poesia. São perfeitas no seu gênero. Nós temos um sistema original e corajoso. Elas têm prática, que remonta há milênios. Neste gênero, nós podemos ser amadores mais ou menos talentosos e até sábios. Mas elas é que são as mestras, as artistas, as poetisas.
— Fim —
Nota1. Ilha no Danúbio, entre Buda e Pest. (N. do T.)
Fonte: Dezsö Kosztolányi. O Tradutor Cleptomaníaco e outras histórias de Kornél Esti. Tradução do original húngaro por Ladislao Szabo. Coleção Leste. São Paulo: Editora 34, 1996.
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(obrigada, Rita)
2 comentários:
tu e as cobras.....:P
É o nome da rúbrica. É para dizer mal. Acho o nome bem escolhido. Odeio cobras. E ratos. A cobra sempre é mais simpática de ver.:-)
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