quinta-feira, dezembro 21, 2006

solidão, Helena, solidão


O dia tinha começado frio. Dos lençóis da cama desfeita, dessa flanela húmida, o torpor do corpo já dormido, Helena renascia para a espera que começava. Era o costume: o borbulhar do leite na cafeteira antiga, o cheiro a café de chicória que lentamente chegava à mesa da cozinha, as primeiras notícias da manhã, a torradeira velha que lhe queimava o pão, a manteiga que se colava à faca. Mais um dia ? Esperou que o velho relógio soltásse um grito, ou ouvir uma gargalhada do outro lado da porta, um gato que se atrevesse a descer o beiral da casa, o bater da portada da sala, mas nada. Tinha tido vida farta. Muitos filhos que lhe deram netos, muitas alegrias sentidas, alguns azares normais, mas sempre a casa cheia. As fotografias sucediam-se em todas as cómodas. Mas saúde não lhe faltava, graças a Deus.
Correu as cortinas do quarto, arejou a roupa, fechou os olhos para ouvir os pássaros, ao longe. Um tímido raio de sol aquecia-lhe as rosáceas da cara enquanto agradecia ao Senhor a sorte de estar viva. Lembrou-se dele. Do homem que tudo lhe dera e nada lhe exigira em troca. Saudades, António ...- dizia ela em voz baixa. Uma lágrima saltou-lhe na face, que limpou nas costas da mão. "Tenho que ser forte", pensou com os seus botões.
Hoje era dia de feira e de passar na igreja. Era um dia farto.
As comemorações de Natal esperavam pelas mãos hábeis de Helena. Mãos já cansadas de tanto trabalhar, mãos tortas de tanto tear, de tanto amassar a vida. Eram bonitos os tapetes de Helena. A cada ponto surgia-lhe uma ideia. Se ao menos tivesse podido dar corpo aos seus sonhos ...
Hoje era tarde.
Apressou-se, como se tivesse o dia cheio. Na verdade, era um dia cheio. Era dia de Natal !
Lembrou-se de um ou dois mais antigos, enquanto aconchegava as luvas aos ossos, o lenço à cabeça, as memórias ao coração. Estava só porque vivia longe. Todos os filhos tinham partido para Lisboa, e por lá tinham ficado. Se ao menos ela tivesse quem a levásse !!!Fazia anos que não via os seus. Como estaria a Joaninha, o Pedro, o Ricardo ? Uns homens, concerteza. De alguns já nem se lembrava.
Chegada à igreja, Helena arranjou as flores nas jarras, com o carinho que lhe era próprio, pediu a benção ao padre e passou na feira. Ainda tinha o suficiente para uma ceia melhorada. Bacalhau já não podia. Mas lá uma ou outra filhós de abóbora, ali da D. Rosa ...
Chegou a casa, arrumou a casa, e esperou que o telefone tocásse. Era meia-noite e o Menino Jesus nascia.
Em casa, Helena ouvia o tic-tac do relógio e o bater da portada. Tic tac tic tac tic tac ...
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Leonor de Saint Maurice

8 comentários:

robina disse...

Então amiga, que tal? ;-)

SaoAlvesC disse...

Que triste! :)

Fresquinha disse...

ÓOOOOOOOOOO Robinaa... Nem calculas as saudades que nos deixáste. Passei do estado de espera, para o estado da preocupação e finalmente, fiquei triste porque me senti abandonada, sem qualquer explicação. Tu não nos deixes assim, óvistes ? Olha, um Santo Natal para ti e os teus. E que o Pai Natal te dê um PC, ligação à net, e um anti-virus muito eficaz porque andam para aí uma virose ... Beijo. Volta sempre. Mi casa es su casa.

Fresquinha disse...

Pandora,
Que honra ...a madrinha deste blog, apareceu ! Eu cá estive a segurar o barco.

Sim, é triste. As televisões teem este poder em mim. Quando chego a esta altura do ano, não penso tanto nas crianças, mas sim nos velhinhos sós. Assim como a Helena. Se soubesses quantos há que teem bem menos que ela. É com eles que estou este Natal. Porque há famílias que tratam os nossos idosos com a maior indiferença. Até no Natal. Beijo. Não te preocupes. Não estou triste. Revoltada ? talvez.

robina disse...

Não fiques triste por minha causa, ok? Não foi mesmo possível andar por cá e acredita que me custou muito.

Ah, e não penses que me esqueci que te devo alguma publicidade no Bosque, deixa chegar o dia 02 e vais ver ;-)

Beijinho grande

Fresquinha disse...

Robina,

Já passou. O que interessa é que estás bem e de volta. Estou curiosa para ver a reacção das pessoas lá no teu blog. Vou espreitar ....
Prometido é devido ... sou como as crianças, quando me prometem não esqueço. Beijo e até já.

matahary disse...

As rápidas melhoras, Fresquinha!
Um abraço. ;)

Fresquinha disse...

Obrigada, Matahari. És uma querida. O Pai Natal nunca gostou de mim ...buáaaaaaaaaa.
Bem, volto agora ao choco, sem postar. Um beijo. (Ainda não usei o "coiso" .....)